Qual história haverei de contar agora?
Na parte do mundo que me recebe amanhecer é uma questão de segundos. O tempo não perdoa ninguém da sua inevitável sucessão de acontecimentos. Amanhece!
O barulho do mar é claro, ressoante. Repercute nos meus pensamentos movidos em desalinho pelas imagens embaçadas que se apresentam ao meu sentido da vista.
A aldeia de pescadores a princípio se forma na minha visão como um lugar disforme e carregado de ângulos retos. Círculos parecem se mover na frente dos meus olhos. Halos coloridos impedem que eu veja com nitidez o ambiente onde estou. Incomuns são as minhas sensações visuais. Meu rosto colado ao chão de areia úmida. Pensamentos vindos de muito longe povoam-me de frases elucidativas: "interpreto as sensações como um conjunto de sinais e sintomas referentes às alterações na condução elétrica do cérebro".
Na parte do mundo que me recebe amanhecer é uma questão de segundos. O tempo não perdoa ninguém da sua inevitável sucessão de acontecimentos. Amanhece!
O barulho do mar é claro, ressoante. Repercute nos meus pensamentos movidos em desalinho pelas imagens embaçadas que se apresentam ao meu sentido da vista.
A aldeia de pescadores a princípio se forma na minha visão como um lugar disforme e carregado de ângulos retos. Círculos parecem se mover na frente dos meus olhos. Halos coloridos impedem que eu veja com nitidez o ambiente onde estou. Incomuns são as minhas sensações visuais. Meu rosto colado ao chão de areia úmida. Pensamentos vindos de muito longe povoam-me de frases elucidativas: "interpreto as sensações como um conjunto de sinais e sintomas referentes às alterações na condução elétrica do cérebro".
Ainda deitado na areia é certo que eu junte as partes das minhas memórias para conseguir me levantar, manter-me de pé. Os resíduos do tempo como eu conheço começam a me preencher. Inicio a reconhecer o tempo do planeta Terra. E ele a mim.
Vozes humanas vem aos meus ouvidos. São estas vozes de humildes pescadores que se aproximam do meu corpo estendido na praia sob o forte sol da manhã.
- Homem, você está bem?
Entusiasmo-me com as sombras e os tons das vozes dos singelos nativos. O arrebatamento me faz movimentar. Levanto-me do chão sem tonturas e sem emitir ruídos. Meus olhares procuram os olhares dos nove pescadores. Seus semblantes humanos me fornecem confiança, acolhimento afervorado. O mais velho dos pescadores se adianta. Aproxima-se convicto do seu convite. Convencido de que eu o aceitarei de bom grado não reluta em proferi-lo.
- Homem, apoie-se em meu ombro. Seus olhos me declaram de que o seu corpo necessita descansar numa boa rede de dormir. Vamos pra minha maloca. Chegando lá o homem come alguma coisa. Depois repousa até não poder mais. Meu nome é Luís. E o homem aí tem algum nome?
- Rúbio. Este é o meu nome, senhor Luís. Estou vindo, acreditem ou não, do planeta Liboririm. Lá eu era chamado de Duoef... Rúbio Talma Pertinax. -respondo ao pescador sem saber ao certo se disse ou se escrevi a resposta.
A minha voz está bamboleante. Feito um bambolê ela gira com ainda tímidos movimentos do corpo. Em torno da minha mente a voz busca palavras. Dou como verdadeiro que as palavras também procuram a minha voz.
- Liboririm, um planeta com três Esferas, nove sóis...
Os homens do mar começam a me chamar animados de Encontrado. Eles vivem como anjos e se servem do oceano. As minhas palavras não causam espantos às almas pescadoras. Ausentes as incredulidades os nove pescadores que me acham se separam. Cada um vai para um lugar diferente nos arredores da aldeia. Escuto eles falarem que irão informar aos outros pescadores que chegou a Atalaia um jovem homem alto, de parecença simpática, um náufrago das estrelas.
A minha voz está bamboleante. Feito um bambolê ela gira com ainda tímidos movimentos do corpo. Em torno da minha mente a voz busca palavras. Dou como verdadeiro que as palavras também procuram a minha voz.
- Liboririm, um planeta com três Esferas, nove sóis...
Os homens do mar começam a me chamar animados de Encontrado. Eles vivem como anjos e se servem do oceano. As minhas palavras não causam espantos às almas pescadoras. Ausentes as incredulidades os nove pescadores que me acham se separam. Cada um vai para um lugar diferente nos arredores da aldeia. Escuto eles falarem que irão informar aos outros pescadores que chegou a Atalaia um jovem homem alto, de parecença simpática, um náufrago das estrelas.
O senhor Luís e eu abarrotados de silêncios e curiosidades caminhamos em direção da casa prazeirosamente chamada pelo pescador de "minha maloca".
- Encontrado, o mar como não pode deixar de ser sempre foi a paixão maior da minha vida. -foi logo me declarando com os sorrisos estampados n'alma.
Os lugares distantes são os lugares que mais se envolvem profundamente com o advérbio perto. Assim que nos adentramos na maloca do senhor Luís vejo a rede que ocuparei. Ao me sentir movendo alternadamente de um lado para outro por algum motivo que a princípio me foge da razão e que se banha nas águas da emoção tenho vontade de chamar de pai aquele pescador de longos cabelos brancos.
- Estais a dar acolhida ao peregrino que fui em Liboririm.
Tenho fome e o pescador me dá o que comer. Tenho sede e o homem das linhas cheias de anzóis me dá o que beber. Numa das paredes vejo uma estampa do quadro Sagrado Coração de Jesus em moldura oval de madeira com cobertura de vidro. Tudo na casa do senhor Luís tem o cheiro característico do mar e do tempo. A sua presença protetora e carinhosa estimula o ressurgimento das minhas lembranças paternas.
- Estais a dar acolhida ao peregrino que fui em Liboririm.
Tenho fome e o pescador me dá o que comer. Tenho sede e o homem das linhas cheias de anzóis me dá o que beber. Numa das paredes vejo uma estampa do quadro Sagrado Coração de Jesus em moldura oval de madeira com cobertura de vidro. Tudo na casa do senhor Luís tem o cheiro característico do mar e do tempo. A sua presença protetora e carinhosa estimula o ressurgimento das minhas lembranças paternas.
- Encontrado Rúbio, meu filho, assossegue-se agora. Beba todo este leite morno contido no copo sobre a mesinha. Durma, descanse o tempo que lhe for o necessário. Quando você acordar será outra vez a noite.
Aspiro o relaxamento proposto pelo dono da maloca. O pescador fecha uma das poucas janelas. A luminosidade diminui. O tempo deseja robusto o encontrão com o meio-dia. Num instante me dou ao sono. Agarro-me às cordas, adornos da rede que não é mais rede. É o planeta Liboririm ainda alimentando a minha memória em pleno nordeste do estado do Pará, Brasil, América do Sul,Terra.
Para os pescadores de Atalaia eu sou um homem procedente das estrelas com uma grande história para contar. Uma história fantástica sobre um planeta situado nos cafundós do judas. Percebi de certa forma que estes pescadores com muita facilidade pressentem as metades disponíveis de um todo.
Sem se proceder com tardança a população da cidade de Salinópolis também já sabe do Encontrado, um estranho porém humano náufrago.
Antes que eu terminasse de contar de 100 a zero cai no sono.
ENTRE O INÍCIO E O FIM
Entreguei-me ao sono. A tarde seria o monumento onde vivo eu descansaria. Assim dormi introduzido em sonhos acalorados. Os sonhos me fizeram a tudo observar. Sonhei com o eterno Liboririm, os seus rios Ojand e Graepia a convidarem os nove sóis para um mergulho realista nas águas do Oceano Atlântico e se unirem ao solitário, incomunicável e insular visitante terrestre que em outros tempos fora um visitante liboririntáqueo cuja tenção se baseava na visão e no conhecimento. Ocasiões e emoções se misturavam nos onirismos intensos que ocorriam involuntários no meu psiquismo.
Na noite que se descortinou pouco tempo depois que os meus olhos se abriram a aldeia de pescadores se cobriu de gente vinda da cidade de Salinópolis e de recantos e rincões ainda não totalmente explorados.
Naquela boa hora poderia permanecer dormindo. Ainda assim ouviria do mesmo jeito que ouvi a voz do senhor Luís se sobressaindo no meio de outras muitas vozes agrupadas. Imaginei um agrupamento de galáxias. Na verdade a multiplicidade de ações realizadas por aquele povo todo nas imediações da casa do pescador apontava para o conseguimento da organização, paz e tranquilidade.
Antes que eu me apresentasse à multidão serena o senhor Luís me levou ao espelho. Usando uma tesoura e um aparelho munido de lâmina de barbear descartável ensaboou o meu rosto e retirou a barba alongada pelos tempos.
- Melhor assim de cara limpa Encontrado Rúbio. A notícia da sua chegada a esta aldeia se espalhou feito um foguete por aí afora. No meio destas pessoas que estão aqui tem até gente da Rádio Litoral de Salinópolis. É náufrago das estrelas, Deus e o mundo querem ouvir a história que o encontrado tem para contar.
Bebi a água que me foi oferecida, ofertada pelo pescador. À direita encontrei uma cesta com frutas. À esquerda o senhor Luís, que não parava nunca, trazia um pedaço de papel higiênico. Virei o meu rosto em direção ao centro do espelho. Vi uma gota de sangue aparecer no meu queixo. Peguei o papel das mãos do senhor Luís. Apertei-o de leve sobre o local do sangramento. Tampouco acreditei que eu era um morto ressuscitado. Senti-me alegre, contente e em paz com a natureza e com toda aquela gente ao meu redor. Apanhei da cesta abricó, graviola e açaí. Aos poucos e com gosto saboreei as frutas.
As palavras estavam próximas de se unirem formando uma história, a minha história de Liboririm, o planeta do Rio Ojand. Por isso não poria as palavras fora de uso nem as suprimiria ou as riscaria dos pensamentos e da voz. Meus sentimentos me diziam que eu estava pronto para completar, complementar o que se seguiria ao elementar. Seria imaginação, arte, literatura ou ciência a história prestes a ser narrada por mim?
No queixo não mais gotejava sangue. A compressa, o chumaço feito com o papel estancou o sangrar. Os pescadores sorriram. Caminhei até a plateia que aguardava tranquila o dilatado pronunciamento do Encontrado, o náufrago das estrelas.
Sem a longa barba e com a postura crescida andei ao lado do senhor Luís até uma cadeira rudimentar enfeitada com cordas entrelaçadas colocada à frente dos assistentes e ouvintes. A cada passo o silêncio se fortalecia. Quando me assentei o audível era somente o ativo barulho do mar.
Os nove sóis não seriam retirados das minhas lembranças. Elas produziriam os devidos frutos. A época de retornar ao planeta Liboririm haveria de chegar talvez quando o fim se abrisse para o reinício. Mas o momento de contar ao mundo sobre a existência de Liboririm havia enfim começado. Levaria comigo todas aquelas pessoas. Iríamos ao longínquo planeta levados pelas palavras que eu estava prestes a proferir.
Quem sabe quando a velhice no futuro viesse traria a época certa de escrever a mesma história que entre o início e o fim me inspirou naqueles instantes diante dos tantos ouvintes a não me preocupar com os segundos, minutos e horas. Nos pensamentos confesso a existência de festa: a alegria registrada não nas contradições dos sentimentos.
Expus oralmente tudo o que eu me lembrava da ida, permanência e volta do planeta Liboririm. Os ouvintes e espectadores a todas as palavras prestaram atenção. Compartilhei com a plateia os meus sentimentos, pensamentos, vivências. Várias vezes me ergui da cadeira motivado pelo entusiasmo da narrativa, pelas inflexões extrovertidas dos liboririntáqueos. Vieram vezes também que me estendi na areia determinado a contemplar as estrelas do céu de Salinópolis nas emoções das palavras liboririntáticas. Relatei toda a história sentindo nas pausas e respirações a minha vontade própria. A cada avanço da narrativa experimentei o amparo iluminado do amor e do perdão.
Ao final da história algumas pessoas falaram que na noite na qual pratiquei o grande pulo elas viram no céu além das estrelas e da Lua uma claridade, um clarão imprevisto, rápido, belo ao extremo, angelical.
Na alta madrugada as pessoas, lentamente, foram retornando às suas casas, malocas, até que a aldeia pela fé que nela depositei deu-me o ponto de partida. Fecundos e sem mistérios os pescadores me acolheram no tempo que eu quisesse ficar ao lado deles e do mar. Deram-me afetuosas roupas e chinelos.
Por nove vezes a minha barba cresceu. Por nove vezes o senhor Luís a desbastou tornando o meu rosto visível. No nono corte dos pelos da face declarei ensolarado aos pescadores que a hora de partir havia chegado. Homens, mulheres, jovens, velhos e até crianças da aldeia e das redondezas se juntaram e contribuíram com o que podiam para o meu retorno rodoviário à cidade de São Paulo.
Hoje é o dia que de Salinópolis embarco com destino a Belém e logo em seguida para a cidade de São Paulo. A manhã está bonita como sempre. O sol me recebe. Eu também o recebo. As despedidas começam cedo sob a nitidez deste lugar iluminado. Em cada abraço dos pescadores sinto o espírito do mundo se originar de Deus, da natureza que me faz discípulo dos ventos.
Arrumo numa sacola as minhas poucas roupas ofertadas pelos pescadores. Ontem eu estava em Liboririm. Hoje estou ainda aqui em Atalaia, mas pronto para depois de amanhã estar em São Paulo. Três tempos perpetuados nas memórias do antes e depois. Tudo pronto para o ir-se embora. O senhor Luís se aproxima. Impõe as suas mãos sobre a minha cabeça.
- É melhor nos apressarmos amigo Encontrado.
Os ventos nos completam. Entramos num carro velho manchado de lama e ferrugens causadas pela maresia. Os movimentos do veículo estão lentos e progressivos. Da lentidão pego os tempos maiores para os pensamentos das despedidas. Da progressão vem a emoção com as paisagens dos avançamentos. Nenhuma palavra é dita pelos ocupantes do Corcel. Aos ventos se juntam os silêncios. Esta união demonstra ter um grande coração.
Chegamos ao ônibus que me levará à capital do estado do Pará. Despedidas estão por todos os lados feito parábolas, realidades, curvas, retas, zumbidos interiores equatoriais.
O senhor Luís me acena. Mostro-lhe da janela do ônibus também as minhas mãos. Ele sorri dócil e matreiro. Será esta a última vez que o vejo?
Deixo a minha história liboririntática nas fantasias dos pescadores de Atalaia e de vários habitantes de Salinópolis. Sem jejuns eles a transmitirão de uma pessoa para outra, de um local para outro. Por conseguinte a verdade virará mentira; por contradição o além estará no aquém; por imaginação a narrativa oral que dei existência será deformada e se espalhará como uma lenda.
Continuidade da vida. De um ônibus entro em outro ônibus. Na metade da tarde chego à rodoviária de Belém. Permaneço na cidade apenas o tempo necessário para que o ônibus com destino a São Paulo estacione na plataforma de embarque, abra as portas e se preencha de passageiros ávidos de vida e de estradas.
Sento-me numa das poltronas do fundo do convencional Transbrasiliana. Por um minuto fecho os olhos. Neste mesmo minuto o ônibus se movimenta. Não sei mais se é manhã, tarde ou noite. A voz do senhor Luís surge nos meus pensamentos.
- É melhor não se apressar agora amigo Encontrado.
Minhas pernas ficam para lá e para cá. A aldeia, Salinópolis e Belém ficam para trás. Exploro o calor, os rios, as chuvas, os jambos. A minha língua do Norte viaja à minha língua do Sudeste. Tantos costumes e palavras. Passo as mãos no meu corpo de viajante brasileiro. Encontro marcas do Sol, do sal, das marés. Nenhum objeto, imã ou talismã liboririntáticos trouxe comigo.
Fora do ônibus há sombras de nuvens. O tempo traz a fome e a sede. O ônibus fica suspenso e para várias vezes. Dentro do ônibus há outras cidades. Às vezes mergulho em meus suores. Outras vezes sonho estar voando. Assim o pretérito vira presente. Deste modo em silêncio voltarei quem sabe ao planeta Liboririm e então escreverei a minha longa história. Outra vez anuncio o futuro. A noite é curta. Assim mesmo a Lua sente saudades do Sol.
Sem se proceder com tardança a população da cidade de Salinópolis também já sabe do Encontrado, um estranho porém humano náufrago.
Antes que eu terminasse de contar de 100 a zero cai no sono.
ENTRE O INÍCIO E O FIM
Entreguei-me ao sono. A tarde seria o monumento onde vivo eu descansaria. Assim dormi introduzido em sonhos acalorados. Os sonhos me fizeram a tudo observar. Sonhei com o eterno Liboririm, os seus rios Ojand e Graepia a convidarem os nove sóis para um mergulho realista nas águas do Oceano Atlântico e se unirem ao solitário, incomunicável e insular visitante terrestre que em outros tempos fora um visitante liboririntáqueo cuja tenção se baseava na visão e no conhecimento. Ocasiões e emoções se misturavam nos onirismos intensos que ocorriam involuntários no meu psiquismo.
Na noite que se descortinou pouco tempo depois que os meus olhos se abriram a aldeia de pescadores se cobriu de gente vinda da cidade de Salinópolis e de recantos e rincões ainda não totalmente explorados.
Naquela boa hora poderia permanecer dormindo. Ainda assim ouviria do mesmo jeito que ouvi a voz do senhor Luís se sobressaindo no meio de outras muitas vozes agrupadas. Imaginei um agrupamento de galáxias. Na verdade a multiplicidade de ações realizadas por aquele povo todo nas imediações da casa do pescador apontava para o conseguimento da organização, paz e tranquilidade.
Antes que eu me apresentasse à multidão serena o senhor Luís me levou ao espelho. Usando uma tesoura e um aparelho munido de lâmina de barbear descartável ensaboou o meu rosto e retirou a barba alongada pelos tempos.
- Melhor assim de cara limpa Encontrado Rúbio. A notícia da sua chegada a esta aldeia se espalhou feito um foguete por aí afora. No meio destas pessoas que estão aqui tem até gente da Rádio Litoral de Salinópolis. É náufrago das estrelas, Deus e o mundo querem ouvir a história que o encontrado tem para contar.
Bebi a água que me foi oferecida, ofertada pelo pescador. À direita encontrei uma cesta com frutas. À esquerda o senhor Luís, que não parava nunca, trazia um pedaço de papel higiênico. Virei o meu rosto em direção ao centro do espelho. Vi uma gota de sangue aparecer no meu queixo. Peguei o papel das mãos do senhor Luís. Apertei-o de leve sobre o local do sangramento. Tampouco acreditei que eu era um morto ressuscitado. Senti-me alegre, contente e em paz com a natureza e com toda aquela gente ao meu redor. Apanhei da cesta abricó, graviola e açaí. Aos poucos e com gosto saboreei as frutas.
As palavras estavam próximas de se unirem formando uma história, a minha história de Liboririm, o planeta do Rio Ojand. Por isso não poria as palavras fora de uso nem as suprimiria ou as riscaria dos pensamentos e da voz. Meus sentimentos me diziam que eu estava pronto para completar, complementar o que se seguiria ao elementar. Seria imaginação, arte, literatura ou ciência a história prestes a ser narrada por mim?
No queixo não mais gotejava sangue. A compressa, o chumaço feito com o papel estancou o sangrar. Os pescadores sorriram. Caminhei até a plateia que aguardava tranquila o dilatado pronunciamento do Encontrado, o náufrago das estrelas.
Sem a longa barba e com a postura crescida andei ao lado do senhor Luís até uma cadeira rudimentar enfeitada com cordas entrelaçadas colocada à frente dos assistentes e ouvintes. A cada passo o silêncio se fortalecia. Quando me assentei o audível era somente o ativo barulho do mar.
Os nove sóis não seriam retirados das minhas lembranças. Elas produziriam os devidos frutos. A época de retornar ao planeta Liboririm haveria de chegar talvez quando o fim se abrisse para o reinício. Mas o momento de contar ao mundo sobre a existência de Liboririm havia enfim começado. Levaria comigo todas aquelas pessoas. Iríamos ao longínquo planeta levados pelas palavras que eu estava prestes a proferir.
Quem sabe quando a velhice no futuro viesse traria a época certa de escrever a mesma história que entre o início e o fim me inspirou naqueles instantes diante dos tantos ouvintes a não me preocupar com os segundos, minutos e horas. Nos pensamentos confesso a existência de festa: a alegria registrada não nas contradições dos sentimentos.
Expus oralmente tudo o que eu me lembrava da ida, permanência e volta do planeta Liboririm. Os ouvintes e espectadores a todas as palavras prestaram atenção. Compartilhei com a plateia os meus sentimentos, pensamentos, vivências. Várias vezes me ergui da cadeira motivado pelo entusiasmo da narrativa, pelas inflexões extrovertidas dos liboririntáqueos. Vieram vezes também que me estendi na areia determinado a contemplar as estrelas do céu de Salinópolis nas emoções das palavras liboririntáticas. Relatei toda a história sentindo nas pausas e respirações a minha vontade própria. A cada avanço da narrativa experimentei o amparo iluminado do amor e do perdão.
Ao final da história algumas pessoas falaram que na noite na qual pratiquei o grande pulo elas viram no céu além das estrelas e da Lua uma claridade, um clarão imprevisto, rápido, belo ao extremo, angelical.
Na alta madrugada as pessoas, lentamente, foram retornando às suas casas, malocas, até que a aldeia pela fé que nela depositei deu-me o ponto de partida. Fecundos e sem mistérios os pescadores me acolheram no tempo que eu quisesse ficar ao lado deles e do mar. Deram-me afetuosas roupas e chinelos.
Por nove vezes a minha barba cresceu. Por nove vezes o senhor Luís a desbastou tornando o meu rosto visível. No nono corte dos pelos da face declarei ensolarado aos pescadores que a hora de partir havia chegado. Homens, mulheres, jovens, velhos e até crianças da aldeia e das redondezas se juntaram e contribuíram com o que podiam para o meu retorno rodoviário à cidade de São Paulo.
Hoje é o dia que de Salinópolis embarco com destino a Belém e logo em seguida para a cidade de São Paulo. A manhã está bonita como sempre. O sol me recebe. Eu também o recebo. As despedidas começam cedo sob a nitidez deste lugar iluminado. Em cada abraço dos pescadores sinto o espírito do mundo se originar de Deus, da natureza que me faz discípulo dos ventos.
Arrumo numa sacola as minhas poucas roupas ofertadas pelos pescadores. Ontem eu estava em Liboririm. Hoje estou ainda aqui em Atalaia, mas pronto para depois de amanhã estar em São Paulo. Três tempos perpetuados nas memórias do antes e depois. Tudo pronto para o ir-se embora. O senhor Luís se aproxima. Impõe as suas mãos sobre a minha cabeça.
- É melhor nos apressarmos amigo Encontrado.
Os ventos nos completam. Entramos num carro velho manchado de lama e ferrugens causadas pela maresia. Os movimentos do veículo estão lentos e progressivos. Da lentidão pego os tempos maiores para os pensamentos das despedidas. Da progressão vem a emoção com as paisagens dos avançamentos. Nenhuma palavra é dita pelos ocupantes do Corcel. Aos ventos se juntam os silêncios. Esta união demonstra ter um grande coração.
Chegamos ao ônibus que me levará à capital do estado do Pará. Despedidas estão por todos os lados feito parábolas, realidades, curvas, retas, zumbidos interiores equatoriais.
O senhor Luís me acena. Mostro-lhe da janela do ônibus também as minhas mãos. Ele sorri dócil e matreiro. Será esta a última vez que o vejo?
Deixo a minha história liboririntática nas fantasias dos pescadores de Atalaia e de vários habitantes de Salinópolis. Sem jejuns eles a transmitirão de uma pessoa para outra, de um local para outro. Por conseguinte a verdade virará mentira; por contradição o além estará no aquém; por imaginação a narrativa oral que dei existência será deformada e se espalhará como uma lenda.
Continuidade da vida. De um ônibus entro em outro ônibus. Na metade da tarde chego à rodoviária de Belém. Permaneço na cidade apenas o tempo necessário para que o ônibus com destino a São Paulo estacione na plataforma de embarque, abra as portas e se preencha de passageiros ávidos de vida e de estradas.
Sento-me numa das poltronas do fundo do convencional Transbrasiliana. Por um minuto fecho os olhos. Neste mesmo minuto o ônibus se movimenta. Não sei mais se é manhã, tarde ou noite. A voz do senhor Luís surge nos meus pensamentos.
- É melhor não se apressar agora amigo Encontrado.
Minhas pernas ficam para lá e para cá. A aldeia, Salinópolis e Belém ficam para trás. Exploro o calor, os rios, as chuvas, os jambos. A minha língua do Norte viaja à minha língua do Sudeste. Tantos costumes e palavras. Passo as mãos no meu corpo de viajante brasileiro. Encontro marcas do Sol, do sal, das marés. Nenhum objeto, imã ou talismã liboririntáticos trouxe comigo.
Fora do ônibus há sombras de nuvens. O tempo traz a fome e a sede. O ônibus fica suspenso e para várias vezes. Dentro do ônibus há outras cidades. Às vezes mergulho em meus suores. Outras vezes sonho estar voando. Assim o pretérito vira presente. Deste modo em silêncio voltarei quem sabe ao planeta Liboririm e então escreverei a minha longa história. Outra vez anuncio o futuro. A noite é curta. Assim mesmo a Lua sente saudades do Sol.