155º DRUNH, TRAREGU / O GRANDE PULO

O traregu chegou unido à voz pulsante de Lavan Dralesoe, o smekagecpymyta. A voz soou nos meus sonhos ainda navegadores do oceano de estrelas. Abriram-se os meus olhos, mas continuei a percorrer os sonhos estrelários. Acreditava estar me entregando às fantasias ou devaneios. Por outro lado confiei de imediato no smekagecpymyta. Eu metade abstrato, metade concreto ouvi os sons das estrelas. Instantaneamente senti a temperatura altíssima. Era notável a sensação de que aquela quentura me impulsionava para o rumo da superfície. Nesse momento escutei barulhos parecidos com explosões, erupções vulcânicas. Não existiam dúvidas. Eu estava tão perto das estrelas que reconhecia os seus sons. Era como se eu as seguisse prestando bastante atenção nas cintilações dos movimentos da nave Atnaglux, onde eu me encontrava. Às vezes às claras, outras vezes secretamente eu ouvia as conversas das estrelas.
- Estrelado duoef, abrais os vossos olhos!
Meus olhos se abriram. A realidade começou a me servir. O sonho deixou de ser a minha febre. Lavan Dralesoe além de ser o meu unificador à Terra cumpria com excelência em grau elevado também a função de piloto da Atnaglux. Coloquei-me de pé. Postura em busca dos bem-estares físico e mental.
- Lavan Dralesoe, o que devo fazer daqui por diante?
- Alinhado duoef, no primeiro pensamento deve se esquecer do lugar onde aconteceram as ações da vossa abdução: a cidade de São Paulo. Em segundo lugar deve reforçar vossas lembranças da Terra, América do Sul, Brasil. Por alguns momentos o duoef perderá a sensibilidade em relação à cidade de São Paulo. Deixei-a escapar, fugir da vossa memória. Agindo assim o próprio duoef iniciará o processo de unificação com o planeta Terra.
O smekagecpymyta ainda me chamava de duoef. Liboririm se distanciara numerosamente.
- Ainda sou nomeado duoef porque estou dentro de uma nave astronave liboririntática. -conclui lentamente tentando me desviar, ausentar-me das consolações paulistanas.
Lavan Dralesoe se alternava entre a pilotagem da Atnaglux e os procedimentos que a minha unificação à Terra exigiam. A nave se mostrava cada vez mais veloz. O tempo me provocava ora calor, ora calafrios. Por vezes me causava contentamentos físico e espiritual.
Por tudo que o smekagecpymyta me falava entendia que a minha unificação era iterativa e adaptativa. Então por repetidas vezes ocasiões aniquilei a cidade de São Paulo, berço da minha abdução, das minhas recordações. Durante esse processo, de tempos a tempos, Lavan Dralesoe vinha à minha presença e construía, fabricava com o ar objetos coloridos e familiares aos meus sentimentos.
- Deslocado duoef, a unificação necessita da vossa memória afetiva. Sei que há riscos de o duoef encarar fragilidades nas vossas memórias. Talvez a Terra e até mesmo Liboririm não sejam tão grandiosos como se apresentam ao duoef. Portanto, não queira o duoef reviver os deslumbramentos que por ventura venha a descobrir nos objetos que não paro de criar. Guarde e preserve as fascinações e encantos na vossa memória. Os objetos à vossa frente não mudam as direções dos ventos. Servem para ajudar o duoef a alcançar o vosso destino, que em contrapartida começa a percorrer os lugares, a Região Norte brasileira, onde ouvi dizer que Rúbio Talma Pertinax, passageiro da Atnaglux desembarcará.
- E quem ou o que, smekagecpymyta, disse, diz ou dirá ao destino onde eu estarei?
- Transferível duoef, dolorosa ou sadia a verdade ficou em vossa mente.
A minha mente e o meu destino provocaram-me a sensação do amanhecer. Os objetos edificados pelo smekagecpymyta passavam várias vezes diante dos meus olhos. Tratavam-se de traçados objetos seguidores dos princípios geométricos que me demonstravam ter realizado uma longa caminhada até a minha visão. Nomeava-os tentando dominar as emoções porque muitos deles me tocavam, suscitavam fortes entusiasmos, medos, tensões, tristezas, alegrias, dúvidas, certezas, prazeres. Eis algumas das designações que conferi àqueles objetos e coisas que afetavam o meu coração e imprimiam movimentos aos pensamentos: espelho, bolinha de gude, imbuzeiro, asa, cruz, relógio, escada, selo, moeda, cigarro, cálice, carimbo, livro, vela, lápis, papel, caneta, carro, flor, berço, esquife, giz, gravador, disco, vitrola, navio, trem, ônibus, avião, faca, garfo, colher, prato, fio, pilha, interruptor, bola, régua, esquadro, telefone, calendário, sabonete, chuveiro, guarda-chuva, chaveiro, escova de dentes, janela, porta...
O meu destino e a minha mente em atenção aos objetos expostos por Lavan Dralesoe deram sinais adiantados de desapego aos pontos definidos da minha abdução. A cidade de São Paulo e a Rua da Consolação passaram paulatinamente a fazer parte dos meus verdes esquecimentos. Devagar, mas com segurança, compreendi o significado e a necessidade de deixar fugir da memória a cidade onde eu morava. Absolutamente não era um não fazer caso de nem falta de estima ou apreço. Interpretava a clara ideia de que antes do meu desembarque da nave Atnaglux precisava transformar e reverter os requisitos liboririntáticos assimilados durante 155 drunhs em regressivos e progressivos sistemas mentais terrestres. Continuei a observar atento e a sentir os objetos que se punham à minha presença. Tocava-os com sentimentos e pensamentos. Submetidos à apreciação os objetos me estimulavam a contar histórias da minha vida para o smekagecpymyta. A minha voz corria por toda a extensão da nave Atnaglux. Nas histórias que confiei a Lavan Dralesoe não faltaram mais palavras do que os fatos que eu sabia. Contei as histórias exclusivamente para o smekagecpymyta. Relatos minuciosos que não exerciam funções terapêuticas. Funcionavam de maneira exemplar como elementos primordiais para o bom resultado das minhas convergências interativas, evolutivas e adaptativas ao planeta Terra. A cada sucessão natural dos acontecimentos relatados Lavan Dralesoe colocava melhorias nas histórias fazendo-me recontá-las nove vezes.
Quando as histórias se finalizaram os objetos igualmente desapareceram. Tal sumiço não alardeou no ambiente silêncio desesperativo.
- Diferente Rúbio Talma Pertinax, o duoef está pronto para enfrentar as ocorrências incertas que possam acontecer no vosso grande pulo às águas da Terra?
- Positivo porque não admito dúvidas! -respondi ao smekagecpymyta convicto de que voltar para casa não se traduziria em sacrifícios. Revelaria-se sim em oferenda.
Com profundos suspiros Lavan Dralesoe simplesmente retornou para o lugar bem delimitado do comando da dirigibilidade da nave Atnaglux. Consciente pensamento penetrou nas minhas clarezas: o smekagecpymyta não podia se despedir nem me dizer adeus. Nenhum sinal a mim seria dado. O tempo não era mais drunh.
Movimentei-me com cuidado. O reencontrado velho amigo tempo terrestre me respirava sem ser incontrolável. Eu também o respirava. Não éramos destoantes um com o outro. Enumerando circunstâncias deduzi que a Atnaglux estava pairada, suspensa no ar sem quase se mexer. No chão da nave abriu-se uma saída circular. Letras e números se acenderam ao redor desse círculo. Informavam que a nave hibernava a uma altura de 21 metros do Oceano Atlântico, período e altura favoráveis para o grande pulo. Ainda comunicavam a localização exata da Atnaglux.

LATITUDE: 00º 36' 49" SUL / LONGITUDE: 47º 21' 22" OESTE / BRASIL - ESTADO: PARÁ - CIDADE: SALINÓPOLIS - DISTANTE 220 KM DA CAPITAL BELÉM / FUSO HORÁRIO: UTC-3 / PRAIA DO ATALAIA

Leitura finalizada. Não parei de me movimentar. Letras e números se misturaram aos raios solares que chegaram ao interior da espaçonave. Alvuras trazedoras do reaparecimento de Laucariel, o anjo do Vale das Pressagias.
- Rúbio Talma Pertinax, eu, o anjo do presente e da despedida, afirmo que vós estais a um grande pulo de deixar de ser o evidente duoef. Vim para vos dizer adeus. Algemas, amarras e jugo não me acompanham nesse despedir-se.
As mãos do anjo Laucariel encostaram-se nos meus ombros. Apoei-me em seu olhar sublime. Decidido pulei para fora da nave Atnaglux. Mergulhei nas águas salgadas do Atlântico. Retornei à superfície e nadei até as areias da praia onde vi a Lua, as estrelas e o Sol se aproximando. Ao me defrontar com aquela noite que se encerrava não presenciei mais a Atnaglux. Talvez na imensa distância na qual a nave se envolvera o smekagecpymyta e o anjo Laucariel ainda pudessem me enxergar, quiçá me imaginar. Ao olhar para o horizonte da terra firme tive dificuldades para definir as formas e as cores que separadas umas das outras impunham à minha visão a dúvida de eu estar ou não em um aldeia de pescadores.